Quando ousadia e disciplina andam juntas

(Valor Econômico)

Por Cibelle Bouças

“A felicidade profissional está diretamente relacionada ao uso do nosso potencial. A gente é mais feliz quanto mais faz uso desse potencial”, disse José Galló, presidente da Renner. “E quanto você acha que já usou do seu potencial, Galló?”, pergunta o Valor. 

Exigente, o executivo responde: “Talvez esteja na faixa de 70%, ou 75%, mas é uma conta intuitiva. Não acho que usei todo o meu
potencial.”

Há 27 anos no comando da Renner, Galló obteve resultados expressivos. Quando chegou, em 1991, para fazer uma consultoria de três meses, a empresa operava com 8 lojas no Rio Grande do Sul, empregava 800 pessoas e tinha valor de mercado de US$ 918 mil. Hoje, a companhia é dona das redes Renner, Camicado e Youcom, com um total de 553 lojas, emprega 21,4 mil funcionários e tem valor de mercado de R$ 29,7 bilhões. Até 2021, o grupo tem como meta chegar a 450 lojas Renner, 125 Camicado e 300 Youcom, totalizando 875 pontos de venda. Galló comanda a Renner desde 1992, primeiro como superintendente e depois como presidente-executivo. Nesta semana, o executivo conclui a jornada de CEO para iniciar uma nova fase. A partir do dia 19, Galló assume a presidência do conselho de administração da Renner. Paralelamente, vai atuar como membro dos conselhos de administração do Itaú Unibanco, da Localiza e da Ultrapar. Para a nova etapa, Galló reservou uma sala em um prédio em frente à sede da Renner, em Porto Alegre, onde trabalhará sozinho quase todos os dias.
Na Renner, Galló será substituído por Fabio Adegas Faccio, que entrou na companhia como estagiário, há 20 anos, e ocupa hoje o cargo de diretor de produto. A sucessão foi preparada durante cinco anos, de acordo com Galló. A varejista criou um programa de desenvolvimento individual de executivos, que incluiu treinamentos e acompanhamento mensal dos profissionais. O nome de Faccio foi definido em novembro de 2018. Desde então, o executivo passa por um processo de integração com Galló para se preparar ao cargo.
“Ele tem uma boa visão sistêmica da empresa e tem a cultura da Renner. O índice de fracasso de executivos que vêm de fora é muito alto, na faixa de 70%. Ter a um candidato interno foi o melhor dos mundos”, disse Galló.

Assim como a Renner se preparou para fazer a sucessão do presidente, Galló se preparou para mudar de função. “Uma das coisas que fiz foi conversar com outros executivos que passaram de CEOs para presidentes do conselho de administração. A partir dessas conversas criei um conjunto de regras que devo seguir”, afirmou. As regras incluem deixar de conversar diretamente com os diretores da Renner e concentrar a comunicação em Faccio, que assume a presidência da Renner no dia 19. “Se ele achar necessário que algum diretor participe da conversa, quem vai convidar é ele”, disse Galló. O executivo acrescentou que pretende fazer mais perguntas do que dar opiniões. E que vai reduzir as idas à Renner a uma vez por semana, “ou quando for necessário”. “Meu lema vai ser colocar o nariz, mas não colocar o dedo”, afirmou.

“As pessoas gostam da ideia dos gestores heroicos. Mas executivos que têm um legado interessante geralmente se cercam das pessoas adequadas. Ao longo da jornada, o Galló conseguiu se cercar de pessoas que possibilitaram transformar a Renner de uma rede local para uma rede nacional”, afirmou Silvio Laban, professor de marketing do Insper.

Preparar-se para assumir a presidência do conselho de uma empresa que já comanda é algo esperado de um executivo que é reconhecido no mercado de varejo pela disciplina, obstinação e consistência nas estratégias. Incansável, Galló trabalha até nas férias. Sempre que viaja para outro país, visita shopping centers e lojas de moda e fotografa centenas de vitrines, que são usadas como matéria-prima no trabalho.

Aos fins de semana, visita shopping e lojas das concorrentes, numa espécie de pesquisa informal. Também vai a lojas da própria Renner para ver a operação de perto. Em sua sala, Galló ainda acompanha em telas de vídeo imagens das lojas da companhia. Se há algo errado, ele liga para a unidade para ajudar a resolver. Esse acompanhamento muito próximo da operação faz parte do “comportamento de dono”, uma característica que Galló sempre tentou levar para os mais de 20 mil empregados da Renner.

Ter um presidente que se comporta como dono é fundamental para a longevidade da Renner, que não possui um grande controlador desde a sua segunda emissão de ações na bolsa de valores, em 1999. Atualmente, o maior acionista da Renner, a Trowe Price Associates, gestora americana de investimentos, detém 9,86% das ações da Renner. O segundo maior acionista, o grupo europeu de investimentos Aberdeen, tem 9,5%. O JP Morgan Asset Management Holdings é o terceiro maior acionista, com 6,85%. Os outros 73,56% das ações estão pulverizadas no mercado. A lista de acionistas chega a 4,8 mil investidores.

Mas nem sempre foi assim. Quando assumiu o comando da Lojas Renner, na virada de 1991 para 1992, a companhia estava nas mãos da família fundadora e enfrentava dificuldades financeiras. Cristiano Renner, neto do fundador Antônio Jacob Renner e sócio-presidente da companhia, contratou Galló para pôr em prática um plano criado por ele mesmo para levar a Renner de volta ao lucro. Galló disse que fez uma exigência, queria independência para tomar as decisões que achasse necessárias naquele momento. O pedido foi atendido.

Entre 1991 e 1994, Galló ajustou as lojas e as finanças da companhia. A rede, que vendia vestuário feminino, masculino e infantil, eletrodomésticos e produtos para o lar, passou a vender apenas vestuário. O passo seguinte foi a substituição de marcas internacionais de moda por marcas próprias e com produção local. Hoje, a Renner trabalha com dez marcas próprias. O público-alvo também foi redefinido, passando a ter como foco a mulher das classes A, B e C, que trabalha fora e faz as compras para a família.

Entre 1995 e 1999, a Renner expandiu sua atuação para a região Sul, chegando a 20 lojas e a um valor de mercado de aproximadamente US$ 260 milhões, de acordo com Galló.
Outro momento importante foi em 1998, quando a Renner decidiu tornar-se uma rede nacional. Para isso, a empresa necessitava de um investimento de aproximadamente US$ 80 milhões. A companhia analisou as possibilidades que tinha de se financiar e decidiu buscar um sócio investidor. A Renner chegou a negociar diretamente com a americana JC Penney uma sociedade, mas a primeira tentativa fracassou. Após meses de negociação, a JC Penney comprou a participação da família Renner na companhia, adquirindo 52% das ações ordinárias e 6% das ações preferenciais. Em seguida, fez uma oferta para comprar as demais ações e passou a deter 98% do capital da Renner.

Logo após a aquisição da Renner pela JC Penney, o Mappin e a Mesbla faliram. Galló viu aí a oportunidade ideal para entrar no Sudeste. A Renner adquiriu 19 lojas da Mesbla e 19 unidades do Mappin. Em um ano e meio, a companhia passou de 21 lojas no Sul do país para 49. “Conversei com outros executivos que passaram de CEOs para presidentes do conselho e criei
regras que devo seguir”

Mais tarde, em 2005, a JC Penney decidiu sair do Brasil e vender a Renner. Galló disse que foi preciso um trabalho duro dos executivos da Renner, da J C Penny, do Credit Suisse (coordenador da oferta de ações), de advogados, da bolsa de valores e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para definir uma proposta de oferta pública de ações que impedisse a compra do controle da Renner por uma concorrente. As ações foram oferecidas diretamente na bolsa. A partir de então, a Renner tornou-se a primeira “corporação” do país. ou seja, uma empresa sem um acionista controlador.

Em 2011, a Renner dá início a uma nova fase. A companhia comprou a Camicado, por R$ 157 milhões – na época, uma rede com 27 lojas e receita de R$ 127,6 milhões. Em 2018, a Camicado contava com 108 lojas e receita líquida de R$ 505 milhões. Foi também em 2011 que a Renner deu início a uma nova transformação. Deixou de ser uma loja de departamentos para se tornar uma varejista de “fast fashion”, ou moda rápida. “A Renner lançava duas a três coleções por ano.

Hoje, fazemos de nove a dez coleções por ano, sem contar as intermediárias. Essa mudança significou simplificar processos, dar mais coragem e poder para as pessoas tomarem decisões e se arriscarem mais”, afirmou Galló. Dois anos depois, a companhia lançou a rede Youcom, de moda feminina jovem das classes A, B e C. A marca encerrou 2018 com 94 lojas e receita de R$ 179,6 milhões. A bandeira Renner chegou a 354 lojas no ano passado, com receita líquida de R$ 6,80 bilhões.

Atualmente, a Renner vive dois novos desafios. Um deles é a expansão internacional. A companhia começou a expansão em 2017, com abertura de uma loja no Uruguai. Hoje, já possui sete lojas no país vizinho e tem planos para abrir até três unidades na Argentina no segundo semestre. Outro foco da companhia é a Colômbia.

“O varejo brasileiro não tem cultura de ir para o exterior e muitas que tentaram enfrentaram dificuldades. Mas a Renner fez o processo com consistência. Não há um plano mirabolante, as ações são muito calculadas. Também é assim no Brasil. No começo da década, quando as redes aceleraram a abertura de lojas, a Renner manteve a mesma toada e investiu em infraestrutura e logística. Quando veio a crise, outras redes penaram e a Renner se destacou. Isso é mérito do Galló, que administra de forma prudente”, avaliou Alberto Serrentino, sócio e fundador da Varese Retail e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC).

Outro desafio da companhia é a inclusão da Renner na era digital. A Renner já começou a fazer esse trabalho. A varejista reformulou o seu comércio eletrônico em 2018 e integrou as lojas físicas ao site. Nos centros de distribuição, adotou sistemas 100% automatizados, capazes de fazer a separação de produtos peça a peça, por loja. A companhia também tornou digitais serviços financeiros, como emissão de cartão e renegociação de dívidas de clientes.

Galló disse que a Renner tem investido em inteligência artificial, “blockhain” e outras tecnologias para transformar seu negócio. “Estamos nos preparando para esse novo ciclo”, afirmou. O executivo disse ter um carinho especial pela área da tecnologia. Recentemente, seu filho, Christiano Galló, que administra uma empresa de investimentos da família, investiu na aquisição de uma fatia minoritária da Delivery Center, uma startup de entregas que usa shopping centers como centros de distribuição de produtos e serviços. Em abril, a Multiplan fez um aporte de R$ 12 milhões para adquirir 18,8% da companhia.

Galló participa da gestão da empresa de investimentos junto com o filho. “Christiano saiu de casa aos 17 anos para estudar nos Estados Unidos, depois estudou na Inglaterra, hoje mora em São Paulo. Nunca tive oportunidade de estar próximo dele. Isso me deixa muito feliz”, afirmou. Galló disse, no entanto, que não pretende ter participação efetiva nas empresas investidas. “Posso contribuir com ideias, mas não terei participação como executivo”, disse.

Perguntado sobre convites para assumir cargos executivos em outras companhias, Galló disse que não recebeu propostas. “Mesmo se tiver convites, não tenho interesse em ser executivo em outra empresa”, afirmou. A manutenção do executivo na companhia teve seu preço. Na proposta do conselho de administração que será votada pelos acionistas em assembleia no dia 18, a remuneração do conselho de administração passa de R$ 4,1 milhões em 2018 para R$ 15,4 milhões. Do total, R$ 4,4 milhões se referem a uma remuneração baseada em ações e opções, paga ao executivo como membro da diretoria. O pró-labore dos conselheiros passa de R$ 1,5 milhão para R$ 8 milhões. A maior parte desse aumento virá da ida de Galló para a presidência do conselho.
Galló nasceu em Galópolis, hoje um bairro na cidade de Caxias do Sul, em 1951. É formado em Administração pela Faculdade Getúlio Vargas (FGV). Começou a carreira como estagiário na Copersucar. Depois, trabalhou no Grupo J. Alves Veríssimo, dono da rede de hipermercados Eldorado (vendida ao Carrefour mais tarde). Também trabalhou na Imcosul, rede de varejo de móveis e eletrodomésticos. Como empreendedor, montou as redes Moda Casa e Eletroshop, que foram vendidas mais tarde. Galló considerou o mercado de móveis muito informal e o setor de eletrodomésticos pouco lucrativo.

Fonte: Valor Econômico
https://www.valor.com.br/empresas/6213479/quando-ousadia-e-disciplina-andam-juntas
Tags:
No Comments

Post a Comment