No longo prazo, um mundo sem barreiras

(Valor Econômico)

Por Cynthia Malta e Luciana Marinelli

Planejar uma operação de varejo para daqui 20 anos no mercado brasileiro parece um exercício de ficção científica, dado o ambiente de incertezas vivido hoje pelas empresas.

Mas, segundo executivos e especialistas ouvidos pelo Valor, uma coisa é certa: os líderes do varejo no futuro serão aqueles capazes de oferecer conveniência ao consumidor. Isso significa criar ecossistemas nos quais seja possível, de forma simples e intuitiva, comprar produtos e serviços a qualquer hora, sem perda de tempo, com segurança e sem barreiras entre o mundo físico e o on-line.
“No futuro, não vai ter mais essa divisão entre loja física e site. O digital vai estar em todo o lugar. A compra vai ser digital”, diz o presidente do Magazine Luiza, Frederico Trajano. Concorda com ele o presidente da Amazon no Brasil, Alex Szapiro: “A gente olha o varejo como um todo. A gente não separa.” Amazon, globalmente, e Magazine Luiza, no Brasil, são referências para o mercado varejista quando o assunto é a integração dos negócios físicos e virtuais.
A gigante americana do comércio eletrônico indicou essa direção de forma enfática em junho de 2017, com a compra da rede de supermercados de alimentos orgânicos Whole Foods, com 460 lojas nos EUA, Canadá e Reino Unido por US$ 13,7 bilhões. O Magazine faz o caminho inverso: quinta maior varejista do país, com mais de 60 anos de existência e 954 lojas, trabalha para se tornar uma companhia digital que também tem unidades em ruas e shoppings.
A loja física, na visão dos dois executivos e também de especialistas em varejo ouvidos pela reportagem, tenderá a ser um lugar menor, onde o consumidor poderá: experimentar um produto e comprá-lo no aplicativo para recebêlo em sua casa pouco tempo depois; buscar orientação pessoal – após ter feito a pesquisa inicial na internet, como já ocorre; e retirar a mercadoria comprada no site.
“Não haverá mais necessidade de lojas enormes. Não será preciso ter tanto espaço”, diz Trajano. A loja física, diz Szapiro, também vai servir como centro de distribuição urbano, mais compacto e próximo da casa das pessoas – o que permite entregar mais rapidamente.
O motor dessa mudança é a massificação do acesso à internet pelo celular. “A tecnologia móvel é a grande responsável pela transformação no varejo e no comportamento do consumidor”, diz o consultor Edmar Bulla, presidente do Grupo Croma. Em janeiro, 42,8% das compras on-line foram feitas por um dispositivo móvel, segundo levantamento da ebit-Nielsen. Sete em cada dez brasileiros já possuem smartphones. Em 2017, esse percentual era de 63%. Com ele, a compra pode ser feita de qualquer lugar. Por outro lado, ao se conectar a um aplicativo para fazer o pedido, o cliente fornece às empresas acesso a uma imensidão de dados sobre seu perfil e rotina.
Não à toa, no supermercado futurístico Hema, que o grupo chinês Alibaba inaugurou em janeiro de 2016 para traduzir o que chama de “novo varejo”, tudo é movido pelo smartphone. Para usufruir de seus produtos e serviços é preciso estar conectado ao aplicativo. Ao mesmo tempo, a loja se propõe a ser um “paraíso” de mercadorias frescas e experimentação. O cliente escolhe seus frutos do mar diretamente de tanques e pode consumi-los ali mesmo, em um restaurante onde é feito o preparo. Depois de pronta, a comida é servida por robôs em uma esteira rolante ao redor das mesas.
Todos os produtos têm um código que pode ser lido com o celular e mostra suas características, dados de origem, oferece descontos e faz recomendações de acordo com o perfil do cliente. O pagamento é feito pelo Alipay, carteira digital do Alibaba. A própria loja é um minicentro de distribuição. O consumidor não precisa pegar todos os produtos de sua lista e colocar no carrinho – um funcionário vê os itens que foram selecionados no aplicativo e percorre a loja para buscá-los. Depois, as mercadorias são embaladas e entregues em 30 minutos em qualquer endereço que esteja a um raio de 3 km dali. Hoje, há cerca de 100 unidades da rede na China.
“O Hema oferece na loja tudo o que as pessoas não precisam, mas querem, e entrega em casa tudo o que precisam, mas não gostam de comprar”, diz o consultor Alberto Serrentino, sócio da Varese Retail. O modelo se propõe a combinar o melhor da loja física, com o melhor da compra on-line. Experiência e interação com o produto no primeiro caso, comodidade e eficiência no segundo.
O que isso muda na maneira como o varejo faz negócios? Para os especialistas, tudo. Começa por realmente colocar em prática o surrado lema de que o cliente está no centro da operação. “A gestão predominante no varejo hoje é muito pouco voltada para o cliente. É uma cultura de gerenciar produtos e operações. Mede-se fluxo de consumidores na loja ou no site, taxa de conversão e tíquete médio”, afirma Serrentino. As estratégias são traçadas com base em indicadores médios, enquanto o modelo que já está transformando o presente e aponta para o futuro é baseado em uma quantidade muito maior de dados individuais. “Empresas como Amazon, Alibaba e Google conhecem as jornadas do cliente individualmente. Sabem o que ele faz quando está no site, o que faz fora dele e o que o faz voltar a comprar”, acrescenta.
Ele cita também um exemplo brasileiro. Conta que quando o Magazine Luiza começou a vender produtos de terceiros em seu site, no modelo conhecido com “marketplace” ou shopping virtual, só incluía lojistas que não fossem seus concorrentes diretos. No processo de transformação digital da companhia, isso mudou. “É uma mudança de foco. O varejista para de olhar como vender o produto e olha como atender melhor o cliente.” O que importa não é se a geladeira escolhida pelo consumidor está no seu estoque ou no de outro comerciante, mas como oferecer o maior sortimento, a melhor entrega. Tornar o seu site a porta de entrada para a compra e o ambiente em que esse processo vai ocorrer.
É o que, no jargão do mercado, é chamado de ecossistema. Uma plataforma digital que exerce forte domínio sobre a sua base de clientes, porque permite que ele acesse, sem sair dela, lojas, conteúdo (como streaming de vídeo ou música), meio de pagamento (vide Apple Pay, Alipay e outras carteiras virtuais). Além disso, é o meio para que No longo prazo, um mundo sem barreiras  outras empresas cheguem a esse consumidor. A essas companhias parceiras é possível vender infraestrutura tecnológica, serviços de logística e armazenagem de produtos, marketing e crédito.
Poucas empresas vão se consolidar como ecossistemas em cada país – os outros varejistas ou prestadores de serviços terão de estar ligados a eles de alguma fora. “Não há espaço para múltiplas plataformas tão amplas. No máximo, duas ou três”, diz a consultora Luciana Batista, sócia da Bain & Company. No Brasil, ela cita pelo menos quatro que estão se movimentando com esse objetivo: Mercado Livre, B2W (controlada pela Lojas Americanas), Via Varejo (do Grupo Pão de Açúcar) e Magazine Luiza. Além, é claro, da própria Amazon, que já exerce esse papel globalmente, e que neste ano começou a implementar seu plano de expansão no Brasil. Há pouco mais de três meses, a gigante americana começou a vender produtos de 11 categorias – como televisores, celulares, brinquedos e cosméticos – de forma direta ao consumidor brasileiro. Até então, só comercializava itens de lojistas hospedados em sua página, no modelo de “marketplace”.
Szapiro diz que para que os brasileiros passem a comprar mais na internet “tem que ter sortimento amplo. No caso da Amazon, queremos colocar cada vez mais produtos no site do Brasil”. Ele também diz que é preciso acelerar o processo de compra, de pagamento e de entrega. O consumidor tem que sentir confiança no processo todo. Aí, ele volta a comprar.
O curioso é que, ao mesmo tempo que os grandes conglomerados de tecnologia tendem a ampliar mais e mais sua presença na vida das pessoas, marcas artesanais e locais também ganham espaço. Batista, da Bain, diz que, há uma cultura do “eu” muito forte, que no consumo se traduz em demanda por produtos e serviços personalizados, acessíveis e entregues na hora e lugar que “eu” preciso, associada a uma cultura do “nós”, que valoriza a produção sustentável, preocupada com o ambiente e com as comunidades locais. “Mais de 30% do crescimento do mercado de bens de consumo nos últimos anos, no mundo, veio de pequenas marcas”, diz a consultora. “Boa parte delas cresceu em redes como Instagram.”
É fundamental, portanto, conhecer e saber se relacionar com a geração Z. Os nascidos entre 1994 e 2010 estão ditando as tendências de comportamento e consumo dos próximos anos. São os nativos digitais, que já nasceram em um mundo com internet e banda larga. “É a primeira geração que nunca viveu num mundo sem conexão. Por mais diferenças que tenham entre si, os ‘baby boomers’, a geração x e os millenials conheceram, em maior ou menor grau, o que era o mundo totalmente analógico, diz Henrique Diaz, diretor de planejamento e conteúdo da empresa de pesquisas Box1824, referindo-se às gerações anteriores.
Outra característica desse novo consumidor é que acesso a um bem é mais importante do que a posse dele. “É uma geração muito menos preocupada em acumular coisas do que as outras”, afirma Dias. Isso significa intensificar o que hoje vemos em serviços como Netflix, Spotify ou Uber, que substituíram a necessidade de comprar um DVD, um CD ou um carro. Nos próximos anos, esse modelo deve chegar a uma infinidade de segmentos. “Por que não ‘assinar’ um serviço que troque o sofá da minha sala a cada 15 dias, em vez de comprar um? Ou que me permita usar uma mochila ou jaqueta diferente a cada mês?”
Todas essas mudanças vão ocorrer em velocidades distintas em diferentes mercados e mesmo dentro de um mesmo país. A tecnologia deve ser a ponte entre a economia tradicional e a nova. Um exemplo é a solução que a Amazon encontrou para fazer entregas mais rapidamente na Índia.

Szapiro diz que o desafio era localizar a casa do consumidor, já que não há CEP [Código de Endereçamento Postal] na Índia. Mas há muitas lojinhas, bem pequenas, que vendem de tudo um pouco. A Amazon adotou a estratégia de propor a esses microvarejistas que fossem também um ponto de retirada de produtos vendidos pela companhia. “O portfólio deles aumentou e o tráfego de pessoas entrando e saindo da lojinha também cresceu”, diz.
No Brasil, os desafios são outros e os diagnósticos de Szapiro e Trajano, do Magazine Luiza, coincidem. A renda média do brasileiro é baixa e muitas vezes o seu limite no cartão de crédito – ainda o meio de pagamento mais usado na internet – não atinge o mínimo necessário para se fazer uma compra. A logística é ruim, fazendo com que o prazo de entrega dos produtos seja demorado e os sites, em geral, não funcionam bem.
O fato de a economia estar crescendo devagar também não ajuda, pois boa parte das empresas costuma represar investimentos em épocas como esta. ” O Brasil precisa urgentemente voltar a crescer”, diz o presidente do Magazine Luiza. “O Brasil é ainda uma Belíndia”, afirma, referindo-se ao termo cunhado pelo economista Edmar Bacha nos anos 70 para designar um país que abriga uma economia pequena e rica, como a Bélgica, cercada por outra imensa e pobre, a Índia.
O presidente da Amazon no Brasil diz que “a economia é uma gangorra. O Brasil é de muitos altos e baixos, mas quando você traça a linha dos últimos 20, 30 anos, é positivo”. O crescimento do varejo vem e virá, diz ele, de inovação e de melhorar a vida do consumidor.
Para Trajano, “se não houver uma distribuição de renda, se o Brasil não crescer de forma mais robusta, vai continuar sendo, daqui 10, 20 anos, como é hoje”. O empresário visitou a China no ano passado para ver de perto o que está acontecendo no país que tem potencial de ser a maior economia do mundo. “Com o maior crescimento do PIB [Produto Interno Bruto] e da renda, o varejo on-line na China cresceu muito”, diz.
A China é referência para o que pode ocorrer no Brasil porque lá, assim como em outros países emergentes, a evolução tecnológica ocorre em saltos. “A China pulou o estágio da bancarização e uso do cartão de crédito e passou para o pagamento por celular”, diz Batista, da Bain. “A maior parte dos brasileiros que usa internet saiu da desconexão total para o acesso via celular nos últimos cinco anos”, acrescenta Diaz, da Box1824.

 

Fonte: Valor Econômico
https://www.valor.com.br/empresas/6234671/no-longo-prazo-um-mundo-sem-barreiras
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